Do resenhista...

Do resenhista: Sociólogo de Formação, mestrando em Ciências Políticas e graduando em Ciências Econômicas, todos pela UFPA. Amante de cinema e dos jogos de Pokémon! Nascido e domiciliado em Belém do Pará.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A Era dos Direitos - Norberto Bobbio


Resenha da obra “A era dos direitos”, do autor Norberto Bobbio
Alan Michel Santiago Nina

Com uma apresentação magistral do economista Celso Lafer, esta obra do italiano Norberto Bobbio reúne uma série de artigos (ensaios) sobre a importância cada vez maior de se estabelecer uma sociedade baseada nos direitos, pondo em relevo principalmente os Direitos Humanos.
De fato, Bobbio dedica-se, repetidas vezes, a apresentar seu ponto de vista sobre o tema ao destacar as seguintes afirmações: foi com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (década de 40), já sinalizada pela Declaração de 1789, como artefatos jurídicos que expressam, numa democracia, a soberania dos cidadãos. Na salutar síntese de Lafer, Bobbio percorre quatro passos para demonstrar esta transfiguração a qual se passa essa construção do Estado democrático:
A primeira etapa é a da positivação, ou seja, a da conversão do valor da pessoa humana e do reconhecimento em Direito Positivo, da legitimidade da perspectiva ex parte populi. São as declarações de Direitos. A segunda etapa, intimamente ligada à primeira, é a generalização, ou seja, o princípio da igualdade e o seu corolário lógico, o da não discriminação. A terceira é a internacionalização, proveniente do reconhecimento, que se inaugura de maneira abrangente com a Declaração Universal de 1948 que, num mundo interdependente a tutela dos direitos humanos, requer o apoio da comunidade internacional e normas do Direito Internacional Público. Finalmente, a especificação assinala um aprofundamento da tutela, que deixa de levar em conta apenas os destinatários genéricos – o ser humano, o cidadão – e passa a cuidar do ser em situação – o idoso, a mulher, a criança, o deficiente. (parte XI do prefácio)
Bobbio resgata Kant para melhor fundamentar esse pensamento de um “direito cosmopolita”, além de estabelecer diálogos sobre ética e moral (como a que trava em relação à argumentação da abolição ou não da pena de morte).
Pode-se dizer que o autor é humanista e defensor do regime democrático, entretanto, a obra empreende críticas tanto à Direita quanto à Esquerda, uma vez que Bobbio evidencia direitos não conservadores (contra argumenta a direita), mas baseados em premissas que tomam como pilar o indivíduo, tal qual expresso na Era Moderna (contra argumenta a esquerda). Sua tese também pode ser assim resumida: “os direitos naturais são históricos; nascem do início da era moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade; tornam-se um dos principais indicadores de progresso histórico” (p.2)
Bobbio inicia a discussão apresentando os fundamentos dos direitos do homem, os quais começaram ilusoriamente com os jusnaturalistas: estes, na busca pelo poder irresistível, cerraram a questão numa espécie de direito natural ao qual os homens estariam ligados. Mesmo Kant se deixou seduzir por tal empreendimento, ao reduzir os direitos irresistíveis à idéia de liberdade. Há uma série de dificuldades por tentar essa busca por um fundamento absoluto:
1)      Direitos do homem é uma expressão vaga;
2)      Os Direitos do Homem constituem uma classe historicamente variável;
3)      A classe dos Direitos do Homem é também heterogênea;
4)      Às vezes, inclusive, há choques de princípios (antinomia) – “quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, tanto mais diminuem as liberdades dos mesmo indivíduos” (p.21), é o que Bobbio chamou de obrigações negativas (abster determinados comportamentos) e obrigações positivas (prover).
Este último tópico, por exemplo, fica evidente na oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais frente ao fundamento absoluto dos direitos de liberdade. Por fim, Bobbio abandona essa premissa filosófica da busca por um fundamento, na impressionante afirmação: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. (p.23)
Em seguida, afirma este ser um problema também jurídico. Em síntese, o fundamento pode ser metafísico (natureza humana), axiomático (considerado em si mesmo) ou expressão objetiva de um dado período histórico. Bobbio toma este último para fundamentar a sua tese: “A Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores” (p.27) e em seguida: “Não sei se se tem consciência de até que ponto a Declaração Universal representa um fato novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais de conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vivem na Terra” (p.27).
Contradizendo Locke, para quem o homem nasceu num estado de natureza, onde todos são livres e iguais (como até mesmo foi repetido na Declaração), para Bobbio “A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser” (p.29). Logo:
A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais. (p.30)
É o famoso progresso do direito nas seguintes etapas, desde o século XVIII ao mundo contemporâneo: direito de liberdade, direito político e direito social.
No artigo “A era dos direitos”, próprio título da obra, o autor resgata conceitos próprios a uma filosofia da história. Analisa a “Metafísica dos costumes”, de Kant, onde o filósofo toma a liberdade civil, onde o povo é representado, legisla e se reúne (típica oposição ao Antigo Regime), como um sinal de progresso. Nas palavras de Bobbio:
Inspirando-me nessa extraordinária passagem de Kant, exponho a minha tese: do ponto de vista da filosofia da história, o atual debate sobre os direitos do homem – cada vez mais amplo, cada vez mais intenso, tão amplo que agora envolveu todos os povos da Terra, tão intenso que foi posto na ordem do dia pelas mais autorizadas assembléias internacionais pode ser interpretado como um “sinal premonitório” (signum prognosticum) do progresso moral da humanidade (p.49).
Há o que Bobbio chama de passagem do dever para o direito, sendo que esta passagem ocorre quando também se desloca o ponto de vista: da sociedade ao indivíduo. Há portanto uma exigência dos cidadãos por terem seus direitos atendidos (são exigências pois os direitos podem não ser atendidos): “do ponto de vista de um ordenamento jurídico, os chamados direitos naturais ou morais não são propriamente direitos: são apenas exigências que buscam validade a fim de se tornarem eventualmente direitos num novo ordenamento normativo, caracterizado por um diferente modo de proteção dos mesmos” (p.75).
Percebe-se que Bobbio se preocupa com a função social do Direito, estudada principalmente pela sociologia do direito:
Direito é uma figura deôntica e, portanto, é um termo da linguagem normativa, ou seja, de uma linguagem na qual se fala de normas e sobre normas. A existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre em um sistema normativo, onde por “existência” deve entender-se tanto o mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigação (p.74).
Na Segunda Parte da obra, Bobbio se preocupa com o percurso histórico percorrido pelos Direitos do Homem, evidenciando não apenas as duas Declarações, mas também o caráter individualista de ambas (o que, já não bastasse a conservadora direita, gera críticas também dos setores de esquerda). Em relação especificamente à crítica marxista, Bobbio pontua:
Quais tenham sido as conseqüências (que considero funestas) dessa interpretação –que confundia uma questão de fato, ou seja, a ocasião histórica da qual nascera a reivindicação desses direitos, que era certamente a luta do Terceiro Estado contra a aristocracia, com uma questão de princípio, e via no homem apenas o cidadão, e no cidadão, apenas o burguês (p.92-93).
Além da influência da declaração norte-americana, Bobbio resgata os contratualistas para resgatar a importância da dualidade entre Estado e poder civil, bem como os jusnaturalistas (como destacado anteriormente). O objetivo desse resgate teórico era mostrar que as relações políticos, ao contrário de uma visão aristotélica, não eram consideradas naturais (ex parte principis), mas sim ex parte civium, ou seja, o que precede é um indivíduo singular, e da sua construção da vida civil se pode derivar as relações com outros indivíduos e com uma nação. Logo, era necessário formular a hipótese (jusnaturalista) de um indivíduo que precede as relações sociais, encarando-o como livre i igual perante seus pares. Uma outra afirmação demasiadamente polêmica, que resume seu pensamento é a seguinte: “Se a concepção individualista da sociedade for eliminada, não será mais possível justificar a democracia como uma boa forma de governo” (p.110).
Bobbio, no entanto, pontua duas críticas contundentes ao jusnaturalismo: a que empreendeu Bentham, que considera que o direito é produto do próprio Estado; e do positivismo jurídico (Hans kelsen e Carl Schmitt), para quem “os supostos direitos naturais não são mais do que direitos públicos subjetivos, ‘direitos reflexos’ do poder do Estado, que não constituem um limite ao poder do Estado, anterior ao nascimento do próprio Estado, mas são uma conseqüência da limitação que o Estado impõe a si mesmo” (p.116).
Mas como já havia assinalado anteriormente, Bobbio acredita que o fundamento é o menos importante frente às tensões e relações políticas. De certa forma, Bobbio prefere a solução moral, e não pragmática, e resgata a imagem de Weber, para quem a política é a luta “entre deuses” (esse posicionamento fica mais claro quando Bobbio discorre sobre a pena de morte). De fato, “somente a história profética (ou filosófica), não a história empírica (mesmo que enriquecida pela história conjetural), pode desafiar – ou mesmo resolver – a ambiguidade do movimento histórico, dando uma resposta à questão de se a humanidade está ou não em constante progresso para o melhor” (p.122-123). Neste sentido, o pensamento do autor direciona-se a uma filosofia entendida em seu sentido histórico, o que Lafer chamou de método de aproximações sucessivas, preocupado com um “espírito do presente”:
Diante da ambigüidade da história, também eu creio que um dos poucos, talvez o único, sinal de um confiável movimento histórico para o melhor seja o crescente interesse de eruditos e das próprias instâncias internacionais por um reconhecimento cada vez maior, e por uma garantia cada vez mais segura, dos direitos do homem (p.128).
A terceira parte da obra, trata do tema da resistência, tolerância e sua oposição à pena de morte.
Primeiramente, diferencia contestação (e seu contrário aceitação), que estaria mais voltado a um plano verbal e ideológico, da resistência (e seu contrário obediência), que está mais voltado a um plano prático, da ação. O autor esclarece que o problema da resistência hoje é um fenômeno coletivo (e não individual), colocando-a em termos jurídicos, de oportunidade e de eficácia, e não se é justo ou seu fundamento absoluto.
Esse ponto de vista fica mais claro quando se pensa na pena de morte. Dois argumentos resgatados pelo autor, a favor da abolição da pena, podem ser assim resumidos: não é necessário que as penas sejam cruéis para serem dissuasórias; se a sociedade política deriva de um acordo dos indivíduos que renunciam a viver em estado de natureza e criam leis para se proteger reciprocamente, é inconcebível que esses indivíduos tenham posto à disposição de seus semelhantes também o direito a vida. Ora, ambos os posicionamentos podem ser refutados. No primeiro caso, pode-se demonstrar ou ocorrer que, de fato, a pena de morte torna-se mais dissuasória (portanto, eficaz). No segundo, pode-se argumentar que o Estado iria impor à pena para salvaguardar o interesse do todo (seria razoável até mesmo pensar em alguém que escapou da pena e, porém, cometeu homicídios, cabendo a indagação: o Estado poupou a vida de um culpado trocando-a por um inocente?). Percebe-se que os defensores da pena de morte seguem uma concepção ética (como Kant), enquanto os abolicionistas utilizam uma concepção utilitarista.
O que Bobbio propõe é justamente resgatar o valor moral, inserindo-o na política. Para ele, a abolição da pena seria um sinal claro de um progresso moral, pois tais sinais só se tornam claros à medida que postos em prática, em atos, objetivamente. Isto porque o indivíduo é posto em primeiro plano, levando a uma derrota do chamado “poder irresistível”. Vê-se, então, que Bobbio não abandona os direitos fundamentais, e faz uso da história para tirar certas conclusões.
Em seguida, Bobbio expõe o problema da tolerância, pensando num mundo onde a cada dia se percebe ainda mais os problemas das ditas “minorias”. Pode-se perceber que o fio condutor do pensamento de Bobbio é o pragmatismo e as convicções morais: daí sua distinção entre o tolerante e o cético, distanciando-se do problema da verdade. Por isso, Bobbio resgata um preceito moral importante: o respeito à dignidade da pessoa humana.
Ora, poder-se-ia ser tolerante de forma indiferente ou mesmo ou por uma questão prática. Tanto que ele critica Marcuse, pois este considera que a boa tolerância é aquela que tolera boas idéias, de modo que a tolerância vai se circunscrevendo a certas doutrinas. O que Bobbio quer dizer, na verdade, é que: “A tolerância só é tal se forem toleradas também as más idéias” (p.195), mas aí estaria num beco sem saída, como poderia impor um limite? “O único critério razoável é o que deriva da idéia mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio da tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes” (p.196)
Daí ele resgata as doutrinas do politeísmo de valores, historicismo relativista, sincretismo, ecletismo, e correlatas.
É, na verdade, um desafio, onde as esferas da liberdade e do poder se confrontam, frequentemente de modos antagônicos. Para Bobbio, como bom filósofo, não há se esquivar do fundamento moral, que podem indicar “sinais de tempo”, como algo premonitório, tal qual na filosofia kantiana. No entanto, é preciso estar atento ao “espírito do tempo”, algo do presente (como as catástrofes morais, ecológicas e atômicas), par perceber que estamos diante, mais uma vez, de um problema eminentemente político.


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