Resenha da obra “A história da sexualidade I: a vontade de saber”, de Michel Foucault.
Por Alan Michel Santiago Nina
O filósofo francês Michel Foucault, em sua narração histórica não-linear, entrega uma excelente obra que serve como ponto de partida para entendermos uma importante parte da genealogia do sujeito: a sexualidade. O tema foi divido pelo autor em uma “trilogia”, sendo “a vontade de saber” o seu primeiro exemplar; os dois outros livros são: “o uso dos prazeres” e “o cuidado de si”.
Vale destacar que o termo “genealogia” não é usado nesta obra, mas somente em “Microfísica do poder”, onde fica mais clara a metodologia do autor.
Foucault inicia a argumentação nos trazendo a imagem da moral vitoriana, com uma sexualidade contida, muda, hipócrita, na qual a família conjugal incita o silêncio ao sexo. Há a existência de um puritanismo moderno, com sua interdição, inexistência e mutismo.
As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibi-las de falarem dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a distingue das interdições mantidas pela simples Lei penal: a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação da inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. Assim marcharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas. (p.10)
Foucault, neste momento, chama a atenção para uma possível lógica da interdição, mas alerta: é necessário ir além do discurso científico para melhor articular poder, saber e sexualidade, uma vez que não se estava apenas constatando a repressão, mas afirmando-a com vigor. A sua quebra estaria numa felicidade futura que se projeta, logo, é algo que é incitado. Assim, o autor questiona: por que nos culpamos pelo sexo? Que dívida é essa? Note que sua crítica a esse modelo de repressão já começa a ganhar forma, na chamada HIPÓTESE REPRESSIVA.
De repente, então, o autor contesta as afirmações feitas no prelúdio. Logo, contesta a hipótese repressiva nas seguintes indagações: Seria ela historicamente tão evidente? A mecânica do poder seria realmente repressiva? O discurso crítico visa cruzar o mecanismo de poder ou faria parte da mesma rede histórica do que denuncia?
“Existira mesmo uma ruptura histórica entre a Idade da repressão e a análise crítica da repressão?” (p.17)
Foucault, então, traça seu OBJETIVO: “Em suma, trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder-saber-prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana”. (p.18)
O autor chama a atenção para o sexo posto em discurso, para as técnicas polimorfas de poder, enfim, questiona quais os canais e através de quais discursos a sexualidade regula o indivíduo, principalmente: NEGA A INTERDIÇÃO, pois para Foucault, o silêncio, a negação, a censura é uma produção discursiva.
Foucault, então, estuda a tal hipótese repressiva, em que, por exemplo, temos a Igreja, a literatura e as novas técnicas racionais regulando o sujeito, cujos discursos intensificam a sexualidade, não o interditam:
a) Igreja: aumento das confissões da carne (não permite obscurecer o sexo, já que até nos sonhos e pensamentos devem ser revelados);
b) Literatura: sexo em detalhes. Ex: Sade.
c) Medicina, psiquiatria, justiça penal: o estudo das perversões no sentido médico e jurídico
d) Racionalidade: tornar o sexo útil, criando uma polícia do sexo, com “necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (p.31)
Neste último exemplo temos uma série de dispositivos, constantemente retomados ao longo do texto: demografia; controle de natalidade; economia política da população; interdição do sexo das crianças; sexo entre adolescentes como problema público. Nota-se: a interdição é apenas uma espécie dentro de tal dispositivo, e não sua forma geral.
“O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado, o sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”. (p.42)
Assim, há uma mudança qualitativa no discurso, emergindo sexualidades úteis e conservadoras. A monogamia heterossexual, como norma, tem direito a discrição (não contraria uma suposta Lei jurídica e natural), logo, o discurso foca nos dissidentes:
“A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.” (p.51)
Cria-se uma série de nomes e sujeitos (exibicionistas, fetichistas, automonossexualistas, mixoscopófilos, ginecomastos, presbiófilos, invertidos sexoestéticos, mulheres disparêunicas, etc), os quais, embora já existissem, não eram postos à tona no discurso:
A mecânica do poder que ardorosamente persegue todo esse despropósito só pretende suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível e permanente: encrava-o nos corpos, introdu-lo nas condutas, torna-o princípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui em razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão dessas milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, distribuição regional de cada uma delas. Trata-se, através de sua disseminação, de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo. (p.51)
O controle funciona como mecanismo de dupla intenção: prazer e poder. Há a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades disparatadas.
O leitor precisa estar atento, portanto, para as verdadeiras intenções de Foucault, ou seja, rejeitar a idéia de que o sexo é prioritariamente interditado. Os discursos e os sujeitos (que passam a ter um nome) são exemplo disso.
É o que Foucault denomina de scientia sexualis, uma produção de verdade sobre a sexualidade. Muito diferente do que seria uma Ars Erotica, arte de iniciação, não prevalecente no ocidente. O que prevalece em nosso contexto social é a confissão.
O indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família, lealdade, proteção); posteriormente passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado) ter sobre si mesmo. A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder. (p.67)
A interdição aqui, portanto, funciona não como elemento central, mas como parte de um dispositivo muito mais abrangente. Se por um lado há a obrigação (interdição) de esconder o sexo, há o dever de confessá-lo, e como ritual, um interlocutor e uma instância que requer a confissão. A seguir os meios e princípios elencados pelo autor para se extorquir a confissão:
1) Codificação clínica do “fazer falar”;
2) Postulado de uma causalidade geral e difusa;
3) Princípio de uma latência intrínseca à sexualidade;
4) Método de interpretação;
5) Medicalização dos efeitos da confissão.
Em princípio, o sexo se esconderia do sujeito, cabendo a um exame clínico resgatá-lo (inconsciente). O interlocutor, hermeneuticamente, decifra o sexo do outro. Cria-se um poder-saber sobre o sujeito: “Nós dizemos a sua verdade, decifrando o que dela ele nos diz, e ele nos diz a nossa, liberando o que estamos oculto” (p.79)
Assim é criado o dispositivo da sexualidade, não sobre a repressão dos instintos (externo), mas fundamentalmente sobre leis que regem o desejo (constitutivas do próprio desejo, logo, interno) e criando o próprio sujeito e as identidades tal qual a conhecemos hoje.
Em um ponto do texto, Foucault diz que esta vontade de verdade atua até mesmo no sexo-natureza (nível biológico), o que foi alvo dos ataques de Judith Butler em “Problemas de Gênero” (2008), para a qual o próprio sexo é, também, uma construção social. Porém, Foucualt apenas queria chamar a atenção para deslocar os dispositivos de poder da sua lógica negativa, da interdição, da censura. Foucault almejava positivar o poder, e é bem provável que acatasse as idéias de Butler, uma vez a autora em questão desmantela e positiva o poder, inclusive, a nível biológico, e não apenas como atuando sobre ele.
Este poder é esboçado pelo próprio direito, logo, “é preciso construir uma analítica de poder que não tome mais o direito como modelo e código” (p.100), ou seja, “pensar ao mesmo tempo, o sexo sem a Lei e o poder sem o rei” (p.101). Foucault assim entende o poder:
Multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte, os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esforço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação de Leis, nas hegemonias sociais (p.102-103).
O poder é entendido na sua forma complexa, como potência e relação, e não como estrutura ou instituição. Esquematicamente:
1) O poder se exerce em inúmeros pontos;
2) O poder não é exterior a outros sistemas (é imanente);
3) O poder vem de baixo;
4) As relações de poder são intencionais (objetivas);
5) O poder cria a resistência (logo, esta não lhe é externa).
6) As “quatro” regras:
- regra de imanência (sexo como objeto possível);
- regra das variações contínuas (as matrizes não se repartem, por exemplo, ao focar a sexualidade da criança, médicos reformulam a dos adultos);
- regra do duplo condicionamento (os dispositivos não são hierarquizados – família e Estado – mas se entrelaçam e se sobrepõem);
- regra da polivalência tática do discurso (este é descontínuo, por exemplo, nomear a sexualidade a liberou para falar por si).
Pode-se dizer que esta descrição sobre o poder é o que há de mais abstrato na obra. Contudo, Foucault equilibra esta impressão ao, em seguida, ir direto à construção histórica dos conjuntos estratégicos ligados à sexualidade: a histerização do corpo da mulher; pedagogização do sexo da criança; socialização das condutas de procriação e psiquiatrização do poder perverso.
São esses exemplos que reforçam sua tese da produção da sexualidade, e não da interdição:
A sexualidade está ligada a dispositivos recentes de poder, esteve em expansão crescente a partir do século XVII; a articulação que a tem sustentado, desde então, não se ordena em função da reprodução; esta articulação, desde a origem, vinculou-se a uma intensificação do corpo, à sua valorização como objeto de saber e como elemento nas relações de poder. (p.118)
É importante destacar: Foucault põe lado a lado o chamado dispositivo da aliança e o da sexualidade. O primeiro é ligado ao direito (lícito/ilícito) e à reprodução, ainda persistindo através de formas tradicionais, especialmente na família. A interdição, por exemplo, é típica deste dispositivo; como regra, há o incesto ou mesmo segregação. Mas o dispositivo da sexualidade ao qual Foucault se refere segue uma nova lógica, muito ligada ao sexo como negócio do Estado e para a vigilância (não interdição):
- autonomização do sexo em relação ao corpo: cria-se a medicina das perversões e os programas de eugenia;
- não se reduz a utilização do prazer para engendrar a força de trabalho, uma vez que também se aplica às classes privilegiadas, embora esteja ligado a uma certa hegemonia burguesa (o corpo se valoriza, bem como o modelo de família e um modelo de sexualidade própria).
Como se percebe, é preciso o leitor estar atento às digressões do autor, pois suas idéias são conectadas de modo dialético: a cultura do corpo positiva certa sexualidade (cria), por isso, não pode ser vista como castração, embora possa apresentar limites, por exemplo, em relação às classes (como também foi o caso do nazismo/racismo).
Enfim, Foucault apresenta um conceito para sexualidade: “é o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa” (p.139). Ocorre, portanto, a difusão de tal dispositivo, e o elemento repressor é que vai compensar a difusão, separando em classes.
Nota-se: Foucault rejeita a hipótese repressiva, pois ela não é o centro de sua análise. Porém, ela reaparece justamente quando o dispositivo em questão (a sexualidade como a compreende Foucault) entra no nível da difusão: “doravante, a diferenciação social não se afirmará pela qualidade sexual do corpo, mas pela intensidade de sua repressão” (p.141). Se há o recalque, a confissão funciona como forma de injunção para prover a sexualidade.
Ora, repreende-se o que é incitado. Há, portanto, uma nova organização sobre a vida, chamada de Bio-poder. A sociedade normalizadora se faz sobre a vida e o corpo (não mais sobre o direito de morte). O dispositivo da sexualidade é quem levanta tais questões, e cria o próprio desejo e o próprio sexo.
Neste sentido, Foucault utiliza a palavra “sexo” como se fosse a própria relação sexual, algo parecido ao coito. E termina sua obra com uma previsão perturbadora: “Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade” (p.171).
Ou seja, as relações e o desejo são fruto da própria construção social. Note que não há essencialismos, identidades naturais ou algo do tipo. O próprio sexo estaria inscrito em tal dispositivo.
Certamente é uma obra inquietante, que deixa uma série de dúvidas, especialmente no que tange ao comportamento do sujeito perante tal dispositivo. No entanto, este é apenas o primeiro capítulo em três, reservando aos próximos a continuação deste “épico” sobre a história da sexualidade.
REFERÊNCIA
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2008.
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
Obrigado Alan, me ajudou muito. Valeu mesmo.
ResponderExcluirMuuito bom !
ResponderExcluirGostei muito da resenha, parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigada.
ResponderExcluirPor gentileza preciso do seu email de contato...!
ResponderExcluirMuito bom mesmo! Parabéns...
ResponderExcluirajudou muito no meu estudo da obra!
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